domingo, 6 de setembro de 2009


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E agora, o que é?
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" A uma distância infinita eu via o chão. Ofélia, tentei eu inutilmente atingir à distância o coração da menina calada. Oh, não se assuste muito! às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro! a gente não ama bem, ouça, repeti como se pudesse alcançá-la antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao nada. Eu que não me lembrara de lhe avisar que sem o medo havia o mundo. Mas juro que isso é a respiração."
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[ A Legião Estrangeira / Clarice Lispector]

sexta-feira, 17 de julho de 2009



Que rua?

Dia desses um amigo deixou escapar numa de nossas conversas que eu estava lhe devendo uma. Com o espanto dessa súbita revelação - que para mim não se encaixava no contexto da conversa - tentei puxar pela memória em que eu poderia estar em falta. Na falta de encontrar uma falta, tentei que me dissesse o que era. Negou-se. Tentei estorquir-lhe a falta, brincando que, se se referia ao almoço pago por ele no final da semana anterior, poderia reembolsá-lo, em espécie ou com outro programa gastronômico. Zangou-se mais e emudeceu. Sem outra coisa a fazer, aceitei. Aceitei sua súbita mudez e a cobrança, agora duplicada, estampada em seus olhos. Também eu emudeci.
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Sem outra coisa em que pensar, pensei em Clarice improvisando um ato gratuito; aquele que muitas vezes lhe salvou a vida, aquele que "se tem causas, são desconhecidas e se tem conseqüências, são imprevisíveis [...]; aquele que é o oposto da luta pela vida e na vida, o oposto da nossa corrida pelo dinheiro, pelo trabalho, pelo amor, pelos prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim - que esta é toda paga, isto é, tem o seu preço."

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Também eu precisava - precisava com urgência, "de um ato de liberdade, do ato que é por si só, um ato que manifestasse fora de mim o que eu não precisava pagar, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver."

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No caso de Clarice, um desses atos de liberdade levou-a ao Jardim Botânico, numa tarde de "céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas [...], lá a vida verde era larga, ela não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu."

Numa da alamedas do Jardim, encontrou uma fonte, "onde a água corria sem parar. Bebeu. Molhou-se toda sem se incomodar, pois esse exagero estava de acordo com a abundância do Jardim."
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Não consegui improvisar um ato gratuito. Continuo mudo, com sede e uma falta de não sei o quê.

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[...] tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. "Que rua?", perguntou ele. "O senhor não está entendendo", expliquei-lhe, "não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro." Não sei por que olhou-me um instante com atenção. [O Ato Gratuito / Clarice Lispector]

segunda-feira, 13 de julho de 2009



Casariam ou não?

Essa foto tirada num dia chuvoso na praia de Copacabana sempre me faz pensar que sim, que se casariam. Olímpico e Macabéa se casariam e viveriam felizes em suas insignificâncias, para todo o sempre e para glória de Deus, embora isso fosse pouco provável:
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As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne-de-sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já que passou, é sempre acredoce e dá até nostalgia. Pareciam por demais irmãos, coisa que – só agora estou percebendo – não dá pra casar. Mas eu não sei se eles sabiam disso. Casariam ou não? Ainda não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra faziam no chão.
Não, menti, agora vi tudo: ele não era inocente coisa alguma, apesar de ser uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri agora, dentro de si, a dura semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida. Mais vida do que ela que não tinha anjo de guarda.
Enfim o que fosse acontecer, aconteceria. E por enquanto nada acontecia, os dois não sabiam inventar acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco de praça pública. E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada. Para a grande glória de Deus.
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Não me lembro bem o que aconteceu com Olímpico, acho que ficou com a colega de trabalho de Macabéa, que morreu atropelada - Macabéa morre atropelada, não a colega de quarto - atropelada e feliz, como aquele outro homem que se distraiu ao atravessar a rua após provar a Deus que ele não existia - Deus não existia, não ele. Mas isso é assunto para um outro post.
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[A Hora da Estrela / Clarice Lispector]

sexta-feira, 10 de julho de 2009




Por que você não me mata?
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Não estive presente
quando se perpetrou
o crime de viver:
quando os olhos despiram,
quando as mãos tocaram,
quando a boca mentiu,
quando os corpos tremeram,
quando o sangue correu.
Não estive presente.
Estive fora, longe
do mundo, do meu mundo
pequeno e proibido
que embrulhei e amarrei
com cordéis apertados
de meridianos meus
e de meus paralelos.
Os versos que escrevi
provam que estive ausente.
Eu estou inocente.


[Álibi / Guilherme de Almeida]

quarta-feira, 8 de julho de 2009




Por que você continua comigo?

A verdade entre Hamm e Clov é como uma máscara que ambos usam, alternadamente; uma realidade que existe somente com o consentimento de ambos.
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- Não vou lhe dar mais nada para comer.
- Então nós vamos morrer.
- Vou lhe dar apenas o suficiente para você não morrer. Você vai ter fome o tempo todo.
- Então não vamos morrer.
- Vou lhe dar um biscoito por dia. Um biscoito e meio. Por que você continua comigo?
- Por que você não me manda embora?
- Não tenho mais ninguém.
- Eu não tenho outro lugar.
- Mesmo assim você vai me deixar.
- Estou tentando.
- Você não gosta de mim?
- Não.
- Antes você gostava.
- Antes!
- Fiz você sofre muito. Não é?
- Não é isso.
- Não fiz você sofrer muito?
- Fez.
- Ah! ainda bem! Desculpe-me. Não ouviu? Desculpe-me.
- Eu ouvi. Você sangrou?
- Menos. Não está na hora do meu calmante?
- Não.
- Como vão seus olhos?
- Mal.
- Como vão suas pernas?
- Mal.
- Mas você pode se mexer...
- Posso.
- Então mexa-se! Cadê você?
- Aqui.
- Volte! Cadê você?
- Aqui.
- Porque você não me mata?
- Não sei a combinação da despensa.
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O fim está no começo e no entanto, continua-se...


- Lembra-se do seu pai?

Também gosto de velhas perguntas; então, volto a pergunta de Hamm dentro do contexto de sua conversa com Clov:
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- Lembra-se quando você chegou aqui?
- Não. Era pequeno demais, você me contou.
- Lembra-se do seu pai?
- Já me fez essa pergunta milhões de vezes.
- Gosto de velhas perguntas. Ah, velhas perguntas, velhas respostas, não há nada como elas. Fui eu quem foi um pai para você.
- Foi. Você foi isso pra mim.
- E minha casa o seu lar.
- É. Esse lugar foi isso pra mim.
- Sem mim, sem pai.
- Sem casa...

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Os diálogos entre Hamm e Clov sugerem um cunho autobiográfico, mais de Hamm que de Clov, já que vem dele a "verdade dos fatos" que os dois compartilham ao longo da peça Fim de Jogo. Isso é logo sugerido numa das primeiras referências ao passado, quando Hamm diz "Está na hora da minha história".

Ora, essa história tanto pode ser uma narrativa autoreferente, baseada em fatos reais, como também uma narração de ficção, inventada por Hamm.
Hamm aproveita-se dessa superioridade para subjugar Clov, não só como um pai preposto, provedor de lar e alimento, mas também como dono do passado de ambos. A Clov parece não restar outra alternativa senão submeter-se.

Até quando?

terça-feira, 7 de julho de 2009



- Lembra-se do seu pai?

Essa é uma das muitas perguntas que Hamm faz a Clov. O primeiro, é um cego paralítico numa cadeira de rodas; o segundo, seu empregado manco, que enxerga mal e não consegue mais se sentar; ambos vivem num lugar esquecido, na companhia dos pais de Hamm, que são aleijados das pernas e vivem em latas de lixo.
Hamm e Clov constantemente se ofendem, mas precisam estar juntos. Rei e peão num tabuleiro de xadrez: o rei sentado em sua cadeira, cego e parado, ora ordenando o movimento ora sendo movido pelo criado manco, que enxerga mal e não pode se sentar.
Nesse lugar mórbido, todos esperam a morte, nutrindo entre si uma dependência psicológica.
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- Lembra-se do seu pai?
- Já me fez essa pergunta milhões de vezes.
- Gosto de velhas perguntas.
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[Fim de Jogo - Samuel Beckett]