sexta-feira, 17 de julho de 2009



Que rua?

Dia desses um amigo deixou escapar numa de nossas conversas que eu estava lhe devendo uma. Com o espanto dessa súbita revelação - que para mim não se encaixava no contexto da conversa - tentei puxar pela memória em que eu poderia estar em falta. Na falta de encontrar uma falta, tentei que me dissesse o que era. Negou-se. Tentei estorquir-lhe a falta, brincando que, se se referia ao almoço pago por ele no final da semana anterior, poderia reembolsá-lo, em espécie ou com outro programa gastronômico. Zangou-se mais e emudeceu. Sem outra coisa a fazer, aceitei. Aceitei sua súbita mudez e a cobrança, agora duplicada, estampada em seus olhos. Também eu emudeci.
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Sem outra coisa em que pensar, pensei em Clarice improvisando um ato gratuito; aquele que muitas vezes lhe salvou a vida, aquele que "se tem causas, são desconhecidas e se tem conseqüências, são imprevisíveis [...]; aquele que é o oposto da luta pela vida e na vida, o oposto da nossa corrida pelo dinheiro, pelo trabalho, pelo amor, pelos prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim - que esta é toda paga, isto é, tem o seu preço."

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Também eu precisava - precisava com urgência, "de um ato de liberdade, do ato que é por si só, um ato que manifestasse fora de mim o que eu não precisava pagar, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver."

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No caso de Clarice, um desses atos de liberdade levou-a ao Jardim Botânico, numa tarde de "céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas [...], lá a vida verde era larga, ela não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu."

Numa da alamedas do Jardim, encontrou uma fonte, "onde a água corria sem parar. Bebeu. Molhou-se toda sem se incomodar, pois esse exagero estava de acordo com a abundância do Jardim."
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Não consegui improvisar um ato gratuito. Continuo mudo, com sede e uma falta de não sei o quê.

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[...] tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. "Que rua?", perguntou ele. "O senhor não está entendendo", expliquei-lhe, "não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro." Não sei por que olhou-me um instante com atenção. [O Ato Gratuito / Clarice Lispector]

Um comentário:

La Vanu disse...

Ô Juquinha...que amigo esse hein? Fazer vc ficar com a pulga atrás da orelha!
Fora isso, sua associação com a Clarice é de uma sensibilidade absurda!
MOlhar-se toda de acordo com a abundância do Jardim...Lindo!